– Pai, vou sair de casa - foi por essa frase que morri.
Era noite de chuva e o céu estava alaranjado, quase cor-de-rosa,
como não se via em meia década por aqui. Até parece que São Pedro previa a
tormenta na superfície também.
Durante a janta sentamos todos à mesa, meu pai na cabeceira,
minha mãe à sua direita, eu à sua esquerda e minha esposa imediatamente ao meu
lado. Meus dois irmãos mais velhos já tinham saído para o trabalho antes mesmo
do céu começar a cair.
- Filho, me passa a manteiga – tremulou a voz de mamãe intencionalmente
na expectativa de conter toda a agonia que se acumulara durante aquela semana e
fizera a atmosfera demasiadamente tensa naquela minha última ceia. Passei a
manteiga sem dar um pio. Imagino que mamãe frustrou-se, pois suas palavras não
serviram de aval para um início de conversa familiar. Lembro muito bem da veia
em minha testa, pulsante e vigorosa, do maxilar serrilhado, da frase presa goela
adentro, louca para sair mas ainda contida pelo queixo travado e lembro de
Carlinha minha esposa, linda como sempre e distraída àquele clima de cena de trincheira
em cinema mudo. Esse era o seu charme.
Nós dois não éramos astutos, casamos muito jovens e baseados
somente no fogo eterno da paixão. Não tínhamos emprego, não tínhamos casa, mas tínhamos
potencial, que na verdade nem chegou a ser explorado pois parti muito cedo.
Carlinha era querida na família, sou sorriso era ímã de generosidade e sem
pensarmos duas vezes, casamos e fomos morar na casa de papai, até que um dia,
como eu já deveria prever, não aguentei mais:
– Pai, vou sair de casa – Carlinha olhou para mim com um
sorriso amarelado, pareceu ignorar os ouvidos e tornou a dedicar-se novamente
ao corte daquele bife acebolado, lindamente fazia isso por sinal. Mamãe deixou
a faca cair em cima da louça branca sem prevenção para apaziguar o barulho do
metal colidindo com a cerâmica, quebrando o ritmo de tensão enquanto todos
concentravam-se em sua trapalhada ou susto. Papai mostrou vigor, levantou o
corpo com impulso, sacou o revólver calibre trinta e oito preso na bainha de
sua calça e apontou para Carlinha:
– A culpa é sua – disse friamente e sem levantar a voz.
Num gesto ingênuo de minha parte segurei a minha arma e
desferi um tiro em direção ao chão. Errei a mira e acertei a perna esquerda de
papai, fazendo-o cair de costas ao piso. Fui bobo mais uma vez ao tentar ajudar
papai a levantar-se ainda com as armas em nossos punhos. Papai deve ter pensado
que eu iria atirar mais uma vez. Não pensou por mal, mas não era essa a minha
intenção. Ele foi mais rápido, preencheu o espaço do gatilho com o dedo, mirou
no meio da minha testa e apertou. Não senti dor alguma, mas lembro que perdi o
contato com chão nesse instante.
Papai levantou-se alheio ao ocorrido, não via nada, não
ouvia nada, exceto alguns ecos vindos de bem longe. Foi mancando até o armário
da sala, abriu a gaveta, guardou a arma e pegou seu tabaco. Fez o cigarro com
seda de arroz e foi para sacada da casa. Sentou-se na cadeira de balanço, cobiçou
a chuva e tragou o fumo como quem traga o mundo, e então percebeu que a mesa de
janta não é lugar para armas.
Papai não fez por mal, nem eu, nem ninguém, mas foi assim
que aconteceu.
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