segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O Céu Já Caiu Agora

– Pai, vou sair de casa - foi por essa frase que morri.

Era noite de chuva e o céu estava alaranjado, quase cor-de-rosa, como não se via em meia década por aqui. Até parece que São Pedro previa a tormenta na superfície também.



Durante a janta sentamos todos à mesa, meu pai na cabeceira, minha mãe à sua direita, eu à sua esquerda e minha esposa imediatamente ao meu lado. Meus dois irmãos mais velhos já tinham saído para o trabalho antes mesmo do céu começar a cair.
- Filho, me passa a manteiga – tremulou a voz de mamãe intencionalmente na expectativa de conter toda a agonia que se acumulara durante aquela semana e fizera a atmosfera demasiadamente tensa naquela minha última ceia. Passei a manteiga sem dar um pio. Imagino que mamãe frustrou-se, pois suas palavras não serviram de aval para um início de conversa familiar. Lembro muito bem da veia em minha testa, pulsante e vigorosa, do maxilar serrilhado, da frase presa goela adentro, louca para sair mas ainda contida pelo queixo travado e lembro de Carlinha minha esposa, linda como sempre e distraída àquele clima de cena de trincheira em cinema mudo. Esse era o seu charme.

Nós dois não éramos astutos, casamos muito jovens e baseados somente no fogo eterno da paixão. Não tínhamos emprego, não tínhamos casa, mas tínhamos potencial, que na verdade nem chegou a ser explorado pois parti muito cedo. Carlinha era querida na família, sou sorriso era ímã de generosidade e sem pensarmos duas vezes, casamos e fomos morar na casa de papai, até que um dia, como eu já deveria prever, não aguentei mais:

– Pai, vou sair de casa – Carlinha olhou para mim com um sorriso amarelado, pareceu ignorar os ouvidos e tornou a dedicar-se novamente ao corte daquele bife acebolado, lindamente fazia isso por sinal. Mamãe deixou a faca cair em cima da louça branca sem prevenção para apaziguar o barulho do metal colidindo com a cerâmica, quebrando o ritmo de tensão enquanto todos concentravam-se em sua trapalhada ou susto. Papai mostrou vigor, levantou o corpo com impulso, sacou o revólver calibre trinta e oito preso na bainha de sua calça e apontou para Carlinha:

– A culpa é sua – disse friamente e sem levantar a voz.

Num gesto ingênuo de minha parte segurei a minha arma e desferi um tiro em direção ao chão. Errei a mira e acertei a perna esquerda de papai, fazendo-o cair de costas ao piso. Fui bobo mais uma vez ao tentar ajudar papai a levantar-se ainda com as armas em nossos punhos. Papai deve ter pensado que eu iria atirar mais uma vez. Não pensou por mal, mas não era essa a minha intenção. Ele foi mais rápido, preencheu o espaço do gatilho com o dedo, mirou no meio da minha testa e apertou. Não senti dor alguma, mas lembro que perdi o contato com chão nesse instante.

Papai levantou-se alheio ao ocorrido, não via nada, não ouvia nada, exceto alguns ecos vindos de bem longe. Foi mancando até o armário da sala, abriu a gaveta, guardou a arma e pegou seu tabaco. Fez o cigarro com seda de arroz e foi para sacada da casa. Sentou-se na cadeira de balanço, cobiçou a chuva e tragou o fumo como quem traga o mundo, e então percebeu que a mesa de janta não é lugar para armas.

Papai não fez por mal, nem eu, nem ninguém, mas foi assim que aconteceu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário