quinta-feira, 31 de março de 2011

Também Morre Quem Atira

Dona Lalinha, sessenta e poucos anos, herdeira de um poderoso latifundiário goiano, especialista em direito civil, bem casada, mãe de dois filhos, Cibele e Alberto, seu principal hobby é cozinhar para o único neto. Seria assim se ela não tivesse entrado na guerrilha e fosse assassinada em 1969.

Desde muito jovem sentia-se independente e tinha um espírito aventureiro, até que com o estopim do golpe de sessenta e quatro frustrou-se e mobilizou todo o ardor do seu sangue no desenvolvimento da guerrilha armada brasileira. Isso aos dezessete anos de idade, quando fugiu da fazenda do pai. Ainda na infância recorda facilmente do seu gen agressivo. Enquanto seu pai proibia a garota de sequer aproximar-se do matadouro de bois em sua propriedade, ela sempre dava um jeito de fugir e participar dessa chassina. Nos primeiros momentos Lalinha se assustava com carnificina, com os ruídos que o animal produzia, com a violência do impacto, com a quantidade de sangue esvaziando o corpo do animal. Isso durou pouco. Acostumou-se com a atividade e convenceu o funcionário de seu pai para realizar sua primeira vítima. Lalinha segurou firme o cabo de uma madeira e num movimento rápido atingiu a cabeça do animal, infelizmente a força da garota não foi suficiente e recebeu ajuda no segundo golpe. O barulho da madeira atingindo o crânio do animal sempre provocou uma vibração sonora agradável para seus ouvidos. Com o animal já ao chão e ainda com os olhos abertos, Lalinha perfurou com uma espécie de canudo metálico o interior da nuca do boi, o sangue espirrando e molhando suas mãos foi um atraente sinal de conquista. Ela tão pequena, conseguiu exercer dominio sob um animal daquele porte e matá-lo em três minutos. Nos dias seguintes Lalinha estava viciada.

Ainda não sabia ao certo se o envolvimento com a guerrilha era pelo desejo revolucionário ou pela adrenalina que um tiro certeiro no inimigo produzia. Umas pessoas tem vocação para medicina, outras para engenharia, Lalinha acreditava ter vocação para matar.

Quando não seria o exército um valhacouto de torturadores? Esses Lalinha sentia mais prazer no combate armado. Passava horas polindo suas armas e praticando o tiro. Apesar de ser a mais jovem do grupo, era a mais destemida, cruel e, de um certo modo, eficiente. Passou a usar o pseudônimo de Augusta, e desde que fugira de casa jamais viu sua família. Lalinha não se incomodava com as noites mal dormidas, com as comidas mal nutridas e as roupas mal lavadas, pois tinha certeza que no fim do dia valeria a pena, seja pelo fortalecimento de seu grupo, seja pelo prazer de fazer mais uma vítima.

Uma missão de captura do seu grupo ordenada pessoalmente por Costa e Silva, conduziu um batalhão de soldados para área de acesso daqueles guerrilheiros, certos setores da população não gostavam da ideia de ter essa gente em sua cidade, e por tanto denunciavam, tornando mais fácil o trabalho dos comendatários. Para infelicidade de Lalinha, nesse corpo de ação havia um cabo em especial, o Oliveira. As únicas leis que esse militar conhecia eram as leis da vingança e da ordem. As ações de Augusta eram conhecidas dentro dos batalhões, de certo modo tornou-se um mito sua personificação. Dentre essas ações Oliveira recorda de uma, a qual trazia um gosto especial pela busca de Augusta: seu pai, o Comandente Oliveira fora assassinado enquanto saia do cinema na capital. Rumores indicaram a presença de uma jovem, que apesar de estar em grupo, fez questão de dar o tiro de misericórdia. Essa jovem era Lalinha, ou Augusta para os militares. O cabo Oliveira jamais superou a morte de seu pai, e jurou a condenação daquela alma impiedosa.

Depois de duas semanas seguindo os rastros em mata densa, numa noite de agosto de 1969, o batalhão repreende os guerrilheiros e há captura de treze deles, além de duas mortes. Para infelicidade do cabo Oliveira, Augusta não estava naquele meio. Sem outra solução Oliveira olha para as faces assustadas daqueles prisioneiros e vê no resto de um deles um germe de desconfiança. Seleciona este para um interrogotário, o Genuíno.

Genuíno era um sujeito nitidamente revolucionário, um admirador de Che Gue Vara, mas algumas de suas ações eram questionáveis para aquele grupo. Ele era o cabeça de informação e conseguia muitas delas por meio de propina, com recursos oriundos do mercado negro de munições com tropas esquerdistas bolivianas. Sua dignidade sempre foi duvidosa entre seus companheiros.

Oliveira manda Genuíno sentar-se numa cadeira de madeira com uma das pernas tombando, dá um boa noite que é rapidamente respondido no mesmo tom de voz, pede ao outro soldado para amarrar as mãos dele atrás do encosto da coluna, e retira imediatamente sua calça bastante surrada. Mas Genuíno não demonstra qualquer sinal de medo, raiva ou tristeza, simplesmente está indiferente, isso definitivamente parecia nao o intimidar. Confiante demais para os pudores de Oliveira. O Cabo retira de sua maleta um equipamento simples, eficiente e já conhecido entre os torturadores: um par de fios desencapados e eletrificados, ligados a uma bateria. Oliveira questiona sobre Augusta, mas Genuíno não parecia ter ouvido.

O volume dos gritos passou a ficar cada vez mais intenso até que Oliveira respira fundo e calmamente reinicia:

- Como você não está cooperando, vamos recomeçar. Tá vendo esses fios? Quer vê-los sobre seus testículos? Garanto que suas bolas explodirão antes de você desmaiar de dor. Vamos ver até quando você sua masculinidade resiste.

Ao aproximar os fios a cerca de dois palmos Genuíno responde:

- Sei exatamente onde o resto do grupo está, sei onde estarão e conheço cada passo de Augusta, ou Lalinha como nós a conhecemos.

Foi o suficiente para Oliveira abrir um sorriso, guardar sua parafernália e iniciar uma conversa branda entre bandido e bandido, sob a garantia de anistiar Genuíno.

Na manhã seguinte os militares encontram facilmente o resto dos guerrilheiros e uma troca de tiros agressiva surpreende a calmaria que a floresta está acostumada. A guerrilha possui poucas alternativas, já que está com o grupo defasado e foi pega de surpresa pela tropa militar. Não foi difícil Oliveira encontrar a jovem e atingi-la em sua coxa esquerda, desequilibrando Lalinha até que tombe na terra molhada.

- Renda-se a não ser que deseja morrer!

Oliveira estava tenso com aquela situação, mas a jovem caída ao chão não parava de disparar contra o cabo e não deu um piu sequer. Sua munição evaporou num instante e a jovem não parecia apelar para a rendição.

- Qual é seu nome garota?! - Oliveira gritava euforicamente - Qual é o seu nome, porra?!

Num espasmo Oliveira segurou os cabelos da jovem, inclinando sua cabeça para frente, num gesto agressivo, mas que possibilitava olhar no fundo dos seus olhos. E tornou a gritar:

- Porra, me diz o seu nome ou te mato agora? É você que é a Augusta?

Lalinha retribui o olhar, e abre um leve sorriso no canto da boca:

- Guerrilheira não tem nome.

Oliveira dispara imediatamente com sua trinta e oito sob seu maxilar. Nesse momento Dona Lalinha deixa de existir.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Adiós Muchachos

Sob qualquer forma ilustre de demonstrar afeto, nenhuma delas pode ser tão eternizada quanto um registro escrito. Me retiro deste lugar sem saber se ainda retornarei, mas com uma sensação confortante de dever (quase) cumprido. Trago implícito nessas palavras as experiências que este lugar me trouxe, por todo amor que houvera, por cada esquina mal pavimentada, por suas praças e palmeiras, pelo erotismo de suas paisagens, pelos bares, vielas sombrias e bocas, que já acalentaram a tanto tempo minha alma. Não sei para onde estou indo, mas sei que não será o meu lugar. O destino prega peças, e é impossível evitá-lo porque a natureza humana é fraca, a carne é fraca e um desejo incendeia minhas entranhas alimentanado uma ilusão de mudanças que sei que jamais ocorrerão.

Faz tanto tempo que não passo em certos lugares. Minha memória hoje é minha principal inimiga. Onde está Bené? Onde está o senhor que passava pela rua de minha avó tocando um triângulo enquanto vendia cavaco-chinês? Onde está a preguiça que vivia nas árvores da praça? Cadê aqueles garotos todos com quem joguei bola na rua de paralelos, hoje asfaltada? Cadê aquelas meninas que na flôr da puberdade criavamos joguinhos para destribuir beijos? Onde está minha primeira paixonite de tantos anos atrás? Eu não vejo mais ninguém soltando pipa, jogando bolas de gude, peão ou colando figurinhas. Tenho certeza de que já não sou o mesmo garoto que saia com uma biscicletinha amarela até a loja de conveniência do posto para comprar picolé, era só o que eu precisava para rir. Hoje tenho receio de olhar no fundo dos meus olhos pelo reflexo do espelho e não ver mais o que um dia eu fui. Sou apenas um alcoolatra prostituído, corrompido pelas imoralidades. A inocência é muito fácil de se perder e impossível de ganhar.

Não acredito num recomeço, mas julgo minha atitude por que não adianta ir contra o mar que por mais que haja esforço, ele sempre vence, sempre leva. Parece ser o curso natural das coisas, muito mais forte que os desejos e a ambição de criar uma família aqui, nesse lugar imperfeito e poético, ainda sustentando um cheiro de terra molhada ao chover juntamente com a brisa úmida.

O caminhão de mudanças está aguardando o envio de material. Me choca essa imagem da partida e a sensação de que agora jamais retornarei para ficar. Que esse meu quarto ficará vazio, se tornando um quarto para visitas talvez ou o tão sonhado escritório que meu pai almeja. Me choca voltar nas férias para ser uma 'visita', reunir os parentes e amigos para festejar minha vinda. Ah, quantas recordações.
Pode ser normal para as pessoas, mas quem sempre fere meu coração sou eu e mais ninguém.



Hoje quero crer que nada foi em vão.
E só.
 


Estância, abril de 2011.
Jorgin, O Maneiro.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O Diário Perdido de Connie, Semente de Maçã

18 de setembro de 2008


Querido diário,

Hoje não deveria ser um dia para sentir alegria, mas no entanto é assim que me sinto. Lembra-se daquele garoto, o texano cheio de ternuna, o qual me aventurei há uns três meses, o Charlie? Ele realmente é amável, mas cansei. Terminamos hoje pela manhã.

Depois do almoço fui até a praia para pensar um pouco nos próximos passos, agora que estou solteira e sou jovem tenho a vida toda pela frente. Minha pele bem cuidada devido esses anos todos de alimentação regrada e produtos de beleza finalmente serviram para alguma coisa. Ainda na praia, enquanto passava meu protetor solar de fator 50, que mantém minha boa textura de pele e ainda garante um agradável perfume, um surfista com sangue latino me encara antes de entrar no mar. Adorei essa sensação de me sentir desejada. Eu jamais sairia dali antes dele ir embora, e assim o fiz. Em sua saída do mar revidei o olhar, foi um convite às claras para o desencadear da arte da sedução. Ele veio até mim e agora, 13 horas depois, o "eu e ele" se tornou "nós".

Desde então estou me perguntando se poderia me enquadrar com o título "garota fácil", pouco importa para mim, mas gostaria apenas de entender. O que há de demais em abandonar alguém que gosta de você, que se importa com você, alguém que realmente seja agradrável e ir de encontro a alguém que nem mesmo sei se seu nome tem um ou dois éles, mas que possui um tom moreno de pele encobrindo os músculos definidos? Ai, é de arrepiar, risos.

O fato é que realmente não me importo com nenhum dos dois, apesar da ternura de Charlie e da atração física por Alan ou Allan.

Deve ser algo biológico. Algo previsto por Darwin, a seleção natural ou dimorfismo sexual. Uma simples luta entre indivíduos pelo direito de se reproduzir. Seria considerável essa hipótese se estivessemos no período paleolítico médio, onde músculos, agilidade e uma pele escurecida seriam favoráveis para a propagação da espécie. Neste século, o cérebro parece ser mais viável, já que possivelmente Charlie garantiria um futuro mais próspero em relação à habitação, alimentação, lazer e etc.

Nossa, isso é uma confusão. Só um momento, o telefone está tocando. Ai!!! É o Alan, ou Allan. Vou aproveitar e perguntar como se escreve seu nome.

(...)

Pronto. Finalmente descobri o motivo dessa escolha e termino aqui minhas interrogações: acontece é que eu estou com tesão.

Aqui na California as coisas são assim.



PS: o nome do surfista latino é com dois éles.



Até amanhã,
Connie, Semente de Maçã

domingo, 13 de março de 2011

Boa Sorte

Bem, aqui estou eu mais uma vez.



Na terra o tempo prega peças em você. Um momento você está vivendo a realidade nua e crua, sem condimentos ou temperos; no próximo, voce está sonhando e depois acorda só para estragar o seu dia; e no último, o sonho se torna realidade. Por esse último ainda espera, apesar de achar que não ficará tempo suficiente por aqui para poder apreciá-lo. Já existiram épocas melhores para você, mas você de repente acordou. Parece que alguém escreveu seu roteiro como se escreve um seriado americano.

Se alguém tivesse te dito isso antes pelo menos, certamente não acordaria. Erros foram cometidos, assim como corações foram partidos e severas lições eternas aprendidas. Sua família continuará sem você, enquanto se afoga num mar das (des)graças sagradas da vida. Você não ama ninguém, na verdade jamais amou. Apenas ama a ideia de amar.

É duro ter que escrever isso, mais duro ter que ler, presumo. As palavras não nasceram para ser algodão-doce, nasceram afiadas como lâmina de um punhal penetrante. Um corte profundo reage melhor que um açúcar derretido na saliva da sua boca. Quer saber quando vai parar doer? Não vai gostar de ouvir isso, mas se você tiver sorte, nunca. É essa dor que ainda te mantém em vida.

Você tem que contar com o que você realmente é, não conte com seu potencial, ninguém sabe se um dia o atingirá. É bem verdade que ninguém deveria ser obrigado a enfrentar sua própria face, é bem verdade que ninguém deveria ser só mais um tijolo na parede, mas às vezes é só isso que você pode ser.

De qualquer forma é melhor se deitar acreditando que nenhum sonho que você ousou sonhar está além de seu alcance.

O relógio está correndo e não vai parar. O buraco está cada vez mais fundo. Vinho é bom, whisky é melhor, admito, mas a bebida causa um suicídio lento e degradante, porém não é isso que vai te matar. É a vida que vai te matar.

Não sei como chegou até isso, mas sei que chegou aqui, apodrecendo sua carne sob o sol quente de Los Angeles.

Todos estamos desperadamente loucos para sentir algo.





Boa noite, Charlie.
Jorgin, o Maneiro.