terça-feira, 20 de novembro de 2012

Quem Traçava As Cartas Na Mesa Era Ela


Madame Rer não era caricata como eu imaginava, muito bonita por sinal, mas transparecia que a cada movimento no baralho do tarô acumulava para si minha sorte e me oferecia em troca o azar. A cigana não dava um pio e seus olhos castanhos claros não negavam a maré ruim.

- Veja bem querido, passará por algo impactante e que te fará rever alguns conceitos seus jamais intocados.





Ouvi essas palavras como se tivesse recebido uma punhalada. Não tive medo, nem curiosidade, mas depositei cinquenta mangos numa informação inútil. Fugi imediatamente e recusei sequer discutir com a cigana tamanha era minha frustração. Se fosse para discutir com alguém seria com Inês, amiga de pouca data e que recomendou a consulta.
 
Na saída, ainda rancoroso pelo prejuízo insólito, passei por uma bomboniere e comprei dois chocolates amargos e um meio amargo, para garantir que meu estômago não se confundisse com a sensação do resto do corpo. Guardei no bolsinho traseiro da mochila azul, junto com livro e cd que ganhei de um hippie sorridente, o qual fiz a promessa de me abastecer com suas obras e dar um feedback honesto, compromisso que realmente queria cumprir.
 
Ainda na rua parei o ônibus, subi, passei pela catraca, exibi um sorriso para uma jovem – que infelizmente não foi retribuído – e sentei no meio, ao lado do corredor. Puxei os fones de ouvido intra-auriculares e dei o play no álbum Led Zeppelin IV. Enquanto eu viajava no som e nas estradas, o transporte fez uma parada para que dois passageiros pudessem subir. Assim que subiram o ônibus entrou em movimento e esses novos tripulantes anunciaram assalto.
 
O mais baixo rendeu o motorista, portava uma arma calibre 38 cromada, muito bonita e brilhosa, parecia ter dedicado alguma hora daquele dia para lustrar a peça metálica. Apesar de sua extrema selvageria pelo menos tinha estilo. O outro, que passou a retirar o pertence de todo mundo sob ameaça de morte, inclusive os meus, era mais alto, estava de boné de aba reta, óculos escuros e portava um cavanhaque démodé. Nesse momento entendi tudo, Madame Rer tinha razão. Sempre achei mais interessante as pessoas de cavanhaque, até cogitava criar um no dia que minha barba alcançasse mérito – iria esperar em vão.
 
No outro momento, quando o sujeito se aproximou de mim apontando sua arma brilhante para minha face, vi no cano do revólver o reflexo do cavanhaque do outro sujeito: “Meu Deus, e pensar que um dia iria colocar uma coisa dessas na cara”. São em momentos como esse que diferenciamos as pessoas: os ateus dos não ateus.
 
Levaram tudo meu, até meu sonho de manter aquela belezura peluda no queixo, o cd e livro do hippie sorridente, o que jamais permitirá cumprir minha promessa, e, é claro, meus dois chocolates amargos e um meio amargo.
 
De consolo me resta a esperança de que eles amem apenas chocolates ao leite.

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