quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Síndrome de Shoichi Yokoi (ou no melhor dos casos, de João Gilberto)

Sofro disso. Não é uma moléstia conhecida pelos acadêmicos da medicina ou psicologia, nem de outra pessoal qualquer, presumo, só que eu simplesmente descobri isso por sofrer justamente disso.

Bem, Shoichi Yokoi foi um soldado do Exército Imperial Japonês. Durante a II Guerra Mundial, foi enviado para a Ilha de Guam em meados de 1941, no Oceano Pacífico, ocupada pelos japoneses logo após um dos mais populares ataques desta guerra, o ataque à Pearl Harbor. Em 1944 os norte-americanos recuperaram a ocupação de ilha e Shoichi Yokoi embrenhou-se nas matas com o intuito de não ser capturado. Até aí tudo relativamente normal, exceto pelo fato dele ter passado 28 anos vivendo num buraco, fugindo de qualquer tipo de ser humano e sem noção alguma do fim da guerra ou de qualquer outra coisa alheia a isso. Até que um dia foi encontrado, tornando-se um herói nacional. Mas que motivo ele teria para essa fuga de 28 anos, sem contato com a família, amigos, seu país, sem conforto, sem uma alimentação adequada, com roupas feitas de plantas nativas?

“Foi muito constrangedor para mim ter retornado com vida”, foi o que ele disse ao chegar de volta ao seu país.

Ainda não encontrei, mas adoraria assistir o documentário Yokoi and His Twenty-Eight Years of Secret Life on Guam (Yokoi e Seus Vinte e Oito Anos de Vida Secreta em Guam). Um caso semelhante e bastante intrigante também é o de outro soldado imperial japonês, Hiroo Onoda, mas não discutirei esse, apesar da semelhança a causa é outra. Vale a pena dar uma pesquisada.

Meu caso não chega a esse nível (pelo menos até agora), mas parece muito com o de João Gilberto. Este cidadão, que por sinal é nasceu onde morei nos primeiros anos de minha vida, Juazeiro da Bahia, é tido como ícone da bossa nova, um ritmo sincopado da percussão do samba, com o emplacado Chega de Saudade (1958) interpretado por Elizeth Cardoso, tendo João Gilberto ao violão, que posteriormente fez um álbum homônimo.

Hoje aos 79 anos, vive em seu apartamento no Leblon (que por sinal não é de fato seu, já que é alugado de uma condessa italiana por mais de quinze anos, que por sua vez acabou de enviar uma ordem de despejo segundo a Folha de São Paulo, o que nem convém eu reiterar), totalmente enclausurado. Não atende a telefonemas, não tem empresário ou assessoria de imprensa, não faz apresentações, toda sua alimentação é enviada até sua residência, e nem mesmo o porteiro ou vizinhos o vê.

Me recordo agora do caso de Belchior, em que uma onda nacional provocada pela mídia global foi a sua procura. O encontraram isolado num pequeno vilarejo do Uruguai, atrapalhando sua reclusão tão bem conquistada.

Me sinto como esses caras, não sei quais são seus motivos, mas gostaria simplesmente de ser um fantasma, mas sem ninguém procurando por mim. Lembro agora do filme Into The Wild, 1997 (no Brasil, Na Natureza Selvagem), baseado no livro Jon Krakauer, publicado em 1996, que conta a história verídica de Christopher McCandless (que passou a adotar o nome de Alexander Supertramp em seu período de reclusão no Alasca e outros lugares magníficos). Quem já assistiu deve ter tido vontade, nem que seja um pouco, de se recolher daquele modo. Eu tive muita (e tenho ainda), mas sou preso por afetos e por gostar de fazer o que faço.

Mas por que a reclusão? Por que se privar das coisas assim? Por que todos esses, cada um com seus motivos e com sua intensidade, preferiram sumir?

Por que EU gostaria de sumir?

Quidam é um termo épico usado por Cyprian Kamil (1821-1883), poeta polonês da segunda geração do romantismo -- olha só onde fui me meter, esse nome deriva da palavra em latim que significa alguém, um ser humano e Cyprian o usa como um homem que procura um lugar na vida, alguém em busca da verdade. Um anônimo, um órfão completo: Quidam, uma sombra de tristeza. Quidam não tem garras retráteis, nem coluna vertebral de titânio, tampouco moral flexível. Me identifico bastante com isso. O mundo pede o oposto do que um Quidam pode oferecer. A clausura parece uma solução, ou pelo menos uma busca por respostas.

A estrada, sinto ela como uma velha amiga. Uma pena não ter tanto contato quanto gostaria e deveria. Me ensina mais que livros e filmes, tem mais devaneios do que os sonhos todos, dá mais respostas mesmo quando surgem mais perguntas, alivia a alma, a mente, o coração. A estrada parece ser o único caminho para a busca das verdades.

“Não pôr fim ao que tem remédio e denunciar as coisas com um simples murmúrio torna-nos cúmplices da nossa miséria”, Saramago, El Pesimista Utópico.

Acabo sendo conivente com minhas angústias. Apesar de chegar ao desejo bastante forte de abdicar de tudo, de procurar respostas com uma velha amiga, no entanto, estou aqui sentado.

Veja o Egito, deve ser o povo mais punk do globo, depois de trinta anos suportando seu ditador, resolveu sair para as ruas como aquela máxima do “faça você mesmo”.

Rezo para que um dia também quebre minhas correntes. Por enquanto vivo com Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança vivendo no terreno mais hostil que consigo imaginar, minha mente. Um verdadeiro conflito de interesses do meu eu com meu outro eu. Se de um lado Dom Quixote é um visionário, um idealista apaixonado, com seus sonhos fantasias e delírios, do outro, Sancho Pança é um cruel realista, que vê apenas o que enxerga. Dom Quixote coloca à tona meu coração, meus sentimentos, minha alma, Sancho Pança reprime, põe o dedo na ferida, tem o trabalho como a dignidade do homem. Um alheio ou pudor de ser escravo do outro.

É como Dom Quixote se refere ao seu fiel escudeiro, Sancho Pança: “Um rapaz de bem, mas com pouco sal na moleirinha”.



Nesse conflito interno um dia alguém vencerá e se for para eu morrer de amor, que eu morra acordado.