domingo, 8 de junho de 2008

Cuidado, Inimigo!

Diferente das outras ocasiões, hoje me reservo o direito de, além de indicar um filme e um álbum, indicar uma bebida.


Primeiro o filme, como de costume. The Elephant Man (O Homem Elefante). Fabuloso filme inglês de 1980, em preto-e-branco, diga-se de passagem. Dirigido por David Lynch e como protagonista o grande John Hurt que interpreta majestosamente cada expressão facial de John Merrick, personagem com 90% do corpo absolutamente deformado devido uma rara doença genética, justamente por isso o longa leva este título. Baseado em fatos reais, o filme narra uma transformação na vida de John Merrick (1962-1980). Sempre injustiçado e usado como atração de circo, apesar de todos os empecilhos, nada o deteve, nem a alimentação baseada exclusivamente em batatas e muito menos a seqüência de surras que freqüentemente levava. Proprietário de uma alma louvável, John finalmente recupera sua dignidade com ajuda do Dr. Treves.

Duas cenas vou deixar por aqui para que você, caro leitor, fique realmente embriagado.
Quando Mrs. Kendal recita Romeu e Julieta aos prantos com John Merrick. Mrs. Kendal, emocionada com o instinto dramático de Merrick, olha para seu rosto desfigurado e diz: "Você não é o Homem Elefante... Você é Romeu!".

A outra é a morte mais poética que lembro ter visto numa tela. A passagem da morte de Merrick se baseia numa visão de estrelas e a única lembrança verbal que tem de sua mãe: “nada jamais morrerá” e então, por fim, finalmente resolve deitar em seu travesseiro como uma pessoa normal.


Sem uma relação clara com o filme, indico o Sergipano com “S” maiúsculo, Nino Karva e seu álbum Mangaba Madura. Fortemente regional, o álbum traz samba de côco, repente, forró, com composições realmente brilhantes. Destaque para “Ribeira” onde há uma brilhante letra, um pandeiro e uma gaita blues-rock, “Nos Mercados” e “Côco De Luthier” que rola até um brasileirinho no cavaquinho. No Forró-Caju, nos mercados, Nino Karva e Siba e A Fuloresta vale um esforço para comparecer. Se alguém quiser o álbum, ficaria feliz em passar.

E finalmente (estou realmente cansando de indicar obras, às vezes penso que não vale o esforço, afinal, cada um sabe o que melhor pra se ver e ouvir, mas por outro lado, particularmente, fico feliz em receber uma indicação de alguém que valha a pena – espero que eu valha a pena) a bebida. Vou ser o mais breve possível nesta. Licor de Rosa. Eu não conhecia (até hoje) e realmente, apesar de geralmente não gostar destas grandes concentrações de álcool hoje me fez bem. É que hoje estou amargo demais pra beber cerveja.



Mas essa minha amarguez tem sentido, pelo menos para mim. Talvez seja absolutamente o oposto. Pois bem, acho que ninguém gosta de ser quase roubado, exceto eu.

Tem um ditado popular que diz: “Quem vê cara, não vê coração”. Desculpe, mas não posso concordar. Pode até ser que seja um dom meu de enxergar na face uma personalidade, mas de uma forma ou de outra não se encaixa a mim.
Estava na capital desde a segunda e hoje pela manhã (sábado) fi quei apreensivo. Nada verdadeiramente excitante havia acontecido nesta semana. Que tolo. A semana ainda não tinha acabado. Havia tempo e de sobra.

Ao chegar no terminal de ônibus, bastante movimentado, e cercado por uma grande mochila nas costas que guardava alguns livros, apostilas, notebook, calculadora científica e mp4 além da mala com algumas roupas seguradas pela mão esquerda, me deparo com um cidadão observador sentando ao banco de concreto.

E então um conflito interno surge. Por um lado eu pensava: “Jorgin, se ligue. Aí é lanceiro e tá de olho”, e por outro: “Cara, pode ser um falso julgamento, uma falsa impressão, que pena esse preconceito”.

Mas eu sabia que lá no fundo, a primeira intuição vinha sempre à tona. Aquela tatuagem no braço esquerdo, o lado direito da face um pouco deformado devido alguma colisão. Bem, a tatuagem é bem comum, mas não naquele cidadão. Os hematomas na face poderiam ser fruto de um acidente, ou uma surra.

Mas tive uma idéia brilhante. Vou testá-lo. Serei a isca perfeita. Se este cara resolver roubar alguém, será a mim. E então saberia se meus instintos faziam jus ao próprio Jorgin. Então sentei ao seu lado e corajosamente abri aquela mochila suculenta, peguei o mp4, os fones, fechei e me pus a ouvir Krig-Há-Bandolo de Raul Seixas, com uma categoria digna de turista decisivamente vacilão.

Os discursos nos olhares eram claros. Ele observava aquela mochila, como um goleiro olha para a bola na hora do gol. Queria pegá-la. Mas ao mesmo tempo em que eu, esperto-imbecil, estava de cara pra cima, eu estava na dele. Meu instinto parecia estar certo. Mas ainda nada acontecera.
Meu ônibus chega e perco totalmente a concentração nele. Enquanto os tripulantes desciam da senzala ambulante Marcos Freire II – DIA, eu aguardava “ansiosamente” minha vez de subir e me dirigir à rodoviária e assim às minhas raízes por pouco mais de uma hora e meia friamente calculadas de viagem. Absolutamente tranqüilo e sem esperar nada mais, alguém se aproxima. De relance apenas noto uma aproximação desconfortável. Algo próximo de um acochamento, porém havia uma grande mochila entre mim e aquele sujeito que ainda não sabia de quem se tratava, logo, qualquer tipo de viadagem está descartada. Mas ainda assim, naqueles dois segundos meus neurônios afloraram e mil coisas passavam sob minha cabeça. Nenhuma delas era a possibilidade de um furto.

No terceiro segundo aproximadamente, escuto em Mi bemol (ou apenas Mi, meu ouvido não é tão preciso quanto aos semi-tons, mas ainda assim, apostaria no Mi bemol ) um zipper a abrir e realmente sinto uma pequena pressão aumentar sob minhas costas.

Rapidamente viro. Solto furiosamente algumas palavras cabulosas e por meio segundo quis matá-lo ali mesmo, na frente de todos. Mas as palavras foram o suficiente, infelizmente. O rapaz sai de fininho com uma cara de culpa no cartório, verifico rapidamente se algo sumiu, minha mochila ainda aberta me deixa um tanto quanto desorientado. Tudo estava lá. Acompanho cada passo do indivíduo. Acreditei que não iria ganhar nada em ir atrás do dito cujo e tomar satisfações. Sua aparência não me enganou. E tão pouco erraria novamente com aquele. Era aparentemente (e certamente) broco. Apesar de ser mais alto e uns dez anos mais velho que eu, me garantia numa troca de socos.

Enfim, isso me deixou com uma estranha e apreciável felicidade.
Descobri que posso confiar em meus instintos, que certas verdades absolutas não cabem a mim, nada sumiu e ainda dei uma de pseudo-valentão-doido-pra-quebrar-a-cara-de-alguém.



Agora vou rezar para que você assista O Homem Elefante, ouça Nino Karva e beba Licor de Rosas.



Jorgin, O Maneiro

PS: o uso da terceira pessoa para me referir a mim mesmo é prova do meu egocentrismo, mas quem disse que o Jorgin não é egocêntrico?