segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Pavio do Destino

As semanas seguiam terríveis para Armando, afinal de contas naturalmente ficou intimidado com todo aquele ensaio da cigana Julieta e sua alma passou a enxergar tudo a sua volta com lentes que filtravam o receio e a desconfiança, um novo prisma cheio de austeridade. Para quem recusava as informações das palmas de suas mãos, Armando se mostrou ser um crente fervoroso, assumidamente fiel à ideia de que aquela seria a sua realidade.




De dia sentia a perseguição do sol, pela noite era a lua, como dois holofotes que trabalhavam em regime de turnos, mas jamais sem dar tréguas. Os astros reis ficaram sacanas demais de repente, contavam os passos de Armando regressivamente, de modo que o último passo seria o passo número um, no zero já não haveria uma alma naquele corpo, um relógio ambulante programado para parar assim que chegasse a sua hora. Além de contarem seus passos regressivamente, quando se encontravam no entardecer alaranjado, quase cor de rosa, ambos amedrontavam Armando e riam entre eles, vendo-o nitidamente com olhar vago pelas ruas, aparentemente aéreo, mas com seu íntimo desiludido com tudo que virá. Cada dia que o passava o rei sol tornava sua sombra reduzida, ficando cada vez mais magra e mais magra até chegar o dia em que esvaecerá, de fato o pavio do seu destino.


Em relação às outras pessoas que morrem, pode-se pensar que Armando estava um passo à frente delas, pois sentia que ia morrer e ainda possuía o vigor juvenil. Poderia desfrutar os prazeres, comer sem pecado, reconciliar e perdoar mágoas do passado, dizer e fazer o que quiser sem falsos moralismos, talvez realizar grandes compras sabendo que jamais pagará, declarar-se para quem queria, trepar com todas as mulheres que pudera, enfim, tudo que vier à tona. Esse também era o pensamento de Armando, mas no fim das contas, seus passos já estavam contados nas centenas.


São dez para as seis dia de domingo, acorda tímido e amarelado como de costume, liga o rádio, toma um banho gelado para despertar, bebe o resto do leite daquela semana, e do nada, ironicamente, decide correr como se suas pernas tomassem vida própria e quisessem fugir do seu corpo, soltas. Os astros reis pregaram uma peça, o triste fim de Armando quando esse havia montado um arsenal para começar a deixar sua marca. Na gaveta suas poesias e contos, jamais publicados e que descreviam personalidades aparentemente corajosas, porém, no fundo, com uma busca contínua por frustrações, realismos e poucas esperanças. Um cassete com oito composições de sambas nostálgicos, com uma melodia que parecia mais uma oração aos deuses. Mas lugar de poesia é na calçada e lugar de música é no rádio.


Seu triste fim sem nenhum legado, sem nenhum cristão na via láctea para lembrar sua passagem pela Terra, sem conquistas, sem heranças e sem memórias. Entretanto atrás das pompas daquele ser abatido e sem sal na moleirinha aos olhos alheios, havia um herói grego jamais revelado.


Armando não deveria morrer sabendo ao menos onde poderia chegar? E se esse foi o seu máximo?

Nenhum comentário:

Postar um comentário