terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Primeiro Dia De Elias Prudente

Enfim chegou o outono, a estação preferida de Elias Prudente, que de prudente mesmo só tinha o sobrenome. Nem fria, nem quente, nem colorida, apenas bela como a tristeza.

Saíram todos dos quartos por volta das onze da manhã com cara de ressaca devido a bebedeira da noite anterior e se dirigiram até a Praça no meio do apartamento. Era assim que eles tratavam o espaço da sala. Marcaram traves do tamanho de quatro palmos com chinelos, dividiram as duplas e iniciaram a seqüência de partidas.

Era um bando de pernas-de-pau na verdade, mas o futebol confinado especialmente na Praça dava a sensação de que aquela era a melhor carreira do mundo, melhor até do que serem músicos como eram. E depois do futebol comiam qualquer coisa que achavam.

Atrás da porta, pendurado na maçaneta, havia um saquinho de couro liso de cabra onde o dinheiro de todos era guardado e usado por todos, sem pedir permissão ou dar explicações. Não era muito dinheiro, mas quase sempre dava para o essencial: comida e maconha. Ocasionalmente alguém gritava: “Pessoal, comida ou fumo?”, e a resposta coletiva soava com vigor: “Fumo!”.  Depois de fumar começavam a compor, tocar, cantar, dançar e rir como a Bahia.

Assim foi nos quatro anos de duração daquela república mista soteropolitana de sete pessoas. Três quartos – sendo um deles exclusivo ao mestre Carlos Cachaça –, uma cozinha, dois banheiros e uma Praça.

Carlos Cachaça era o filósofo, apesar de abominar esse título. Gostava de discutir as coisas deste mundo e de outros mundos, sobretudo no que diz respeito às almas alheias, pois a sua estava vendida a uma divindade feminina e desumana ao mesmo tempo. Lia o tempo todo, conhecia as mais diversas teorias e linhas de pensamento filosófico, porém não eram os livros e seu conhecimento que o deixara com o ar de austeridade, era apenas a ausência de sua alma que dava o tom severo à sua face. Mesmo não sendo o mais velho, era o mestre e tinha um espaço exclusivo, ninguém entrava e todos respeitavam. Elias Prudente era, de um certo modo, seu discípulo.

Para contrariar os cosmos Elias Prudente andava distante das linhas de suas mãos. Seu temperamento impulsivo e corajoso não permitia plano e tampouco medo. Entretanto tinha aversão à morte, pois desde que conheceu os prazeres de uma mulher entendeu porque os homens têm medo de morrer.


“Cadê a seda? Alguém viu a seda?”, Eugênia Leão, a Geninha, perguntou a todos. “Usei a última ontem” alguém gritou de outro quarto. Carlos Cachaça, que não tinha apego a nada material ou espiritual, convenceu a todos a usar as folhas da bíblia. Eram fininhas, pouca tinta e havia uma porção delas.

Começaram pelos primeiros livros do antigo testamento. Enquanto fumavam, Carlos Cachaça divagava sobre as escrituras hebraicas, a origem do mundo sob a perspectiva criacionista e sobre a relação de Deus com o povo isralita. Foram para os livros seguintes, os proféticos, os salmos e outros mais.

Em pouco tempo aquela bíblia se tornou fininha. Havia restado somente o Apocalipse e, mesmo sendo todos ateus, evitavam usar aquelas folhas.


Naquele dia Carlos Cachaça rasgou a primeira página sem fazer cerimônia, e os outros foram automaticamente para a roda no meio da Praça. Todos exceto Elias Prudente, que observava de longe e com desdém o seu mestre e amigos. Pela primeira vez sentiu medo.
Ignorou a todos, foi até seu quarto, pegou seu pequeno punhado de roupas e colocou numa bolsa. Abriu a porta, todos olharam para ele: “Para aonde vai?” foi o que Carlos Cachaça perguntou. “Se der sorte, seguir em frente” foi a resposta que todos ouviram.





Aos filhos de João,
De Jorgin, O Maneiro.

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